"Entre dois Mundos"

"Entre dois Mundos"

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Greensleeves Celtic Version

Há seis séculos atrás...

Inquisição Espanhola. Época da Escuridão da Humanidade. Medo, desespero, perseguição, fuga, morte.

Vejo fogo. Chamas bruxuleantes. Labaredas. Vejo, logo a seguir, um anel, à altura de minha boca. Fora obrigada a beijá-lo. Imunda, quase despida, roupas rasgadas, cabelos em desalinho, desesperada, peço-lhe ajuda. Imploro-lhe uma chance de viver por nosso filho.  Grito para que recorde de nossos momentos, naquele quarto, naquela cama, aos pés do Crucificado.

Olho ao redor e vejo, indefesa, rostos patibulares acusando-me de seduzir aquele homem que um dia jurara-me amor eterno. Aquele a quem julgava puro e que, naquele momento, a fim de receber os benefícios de um delator que - diante do Inquisidor - teria seu status inabalado e recompensado, jogara-me nos braços imundos daqueles homens cruéis e famintos por carne fresca. Compraziam-se em torturar mulheres inocentes cujo único pecado seria o de nada esconder. O de viver plenamente, crendo em Uma Força Maior que ainda não conheciam totalmente.

Fora exposta à torturas inimagináveis. Pedira, por muitas vezes, ao acordar após uma série de golpes extremamente dolorosos, que matassem meu corpo. Cuspia-lhes na cara, esbravejando que minh'alma jamais se curvaria àquele Deus impiedoso. Vira-o, por diversas vezes, acompanhado por seus superiores, a fitar-me com um desespero velado em seus olhos. Mas, diante do meu sofrimento - nada fizera. Diante do poder do maior inquisidor da Europa, sucumbira. Sua covardia levara-me a perder nosso filho, minha casa, minha alegria, minha saúde.

Lembrara-me - por frações de segundos - do dia em que o conhecera. Observava-me a banhar-me em um dos rios da região. Nua e sem pudor pois, não via pecado na nudez, pedira-lhe que chegasse mais perto de mim.  Conversamos durante horas, a fitar o céu que, pouco a pouco, mudava de cor.

Acordava sob o som das chicotadas e lembrava-me de que tudo fora em vão. Fora usada. Acusada por usar de magia negra, feitiçaria, por pactuar com o demônio.

Ele poderia ter salvo minha vida, mas preferira ocultar-se sob o capuz do manto negro que costumava trajar.

Jamais esquecerei o dia em que - tendo estendido minhas mãos magras e sujas a ele - com a metade do meu corpo sobre uma mesa imunda com odor de carne e sangue - fora violentamente usada por aqueles homens. 

Ele a tudo assistira. Indiferente. Frio. Sem demonstrar uma reação em seu rosto de feições fortes que  costumava acordar meus instintos mais selvagens antes de tudo acontecer.

Não. Não morrera na fogueira. Lembrar-me-ia disso. Definhara de fome, tristeza, saudades. Conseguira escapar daquele lugar de alguma maneira. Começara a vagar sem rumo pela região.  Meu corpo inerte fora encontrado por um casal de idosos tão miseráveis quanto eu. Cuidaram de mim que se fora uma filha.

Nunca soubera do destino de nosso filho. Nunca mais sorrira. Nunca mais chegara a viver novamente. Morrera nova, em um corpo corroído pela dor, pelas marcas da violência sofrida e pela mágoa causada por aquele por quem apaixonara-me loucamente e por quem fora traída, dolorosamente. 

Lembro-me disso. Hoje, lembro-me das chamas, do homem orgulhoso, do medo de sua proximidade, da ânsia de vingança...ou de tê-lo novamente em meus braços.


21h34m - 11/02/2013