"Entre dois Mundos"

"Entre dois Mundos"

sábado, 30 de novembro de 2013

Maysa - Hino ao Amor (L'hymne à L'amour)

O Dia em que enterrara minha mãe.

Fora tão recente que - ainda que o quisesse - não conseguiria esquecê-lo.

Não. Não fora tão doloroso assim.

Sim. Já aguardávamos por aquele momento desde que seu martírio - o de minha mãe - tivera início.


Em verdade, seu martírio começara antes mesmo de eu nascer.

Seu martírio iniciara-se no momento em que cruzara o caminho - hoje sei que não fora por ingenuidade - de sua grande paixão. Falo paixão em seu pior e mais drástico sentido.

Pobre mãe!  Não poderia supor que ali, naquele momento em que (talvez) sorrira para aquele homem, estaria reencontrando seu comparsa, verdugo, escravo e, por consequência, sua perdição.  Estaria frente a frente com o seu fim e - mesmo assim - optara por ficar ao seu lado.

Não. Não desmembrarei a vida - estranha vida - do casal.

Não. Não direi que passara momentos felizes ao lado dela.

Não. Não direi que recebera - dela - carinho e mimos.

Recebera dela apenas um grande e forte ensinamento, sem que ela o soubesse:

Ao cair no chão, levante-se sozinha.

Não. Não guardo mais mágoas em meu peito com relação à minha mãe. Não.

Não depois do que a vira passar ao lado dele - sua mórbida paixão, sua maldição, seu triste fim.

Deus! Não me sai da lembrança uma música de Roberto Carlos (cantor que o casal ouvia, separadamente) em todos os finais de semana enquanto estivera sob o mesmo teto em que eles habitavam.

Não me lembro bem do nome da música...

Sua letra nada tem a ver com o momento, mas, por algum motivo, escondido em minha mente ainda doente, trago a lembrança de vê-la chorar em seu quarto, sozinha, noite após noite, esperando-o voltar a casa.

Não. Ela não fora a companheira ideal.

Não. Ele não soubera respeitar o lar e a companheira que tivera.

Não.  Eu jamais conseguiria - por mais que eu tente - esquecer (o que não significa deixar de perdoar) o que ambos fizeram a mim. Efetivamente, o que mais dói é aquilo que deixaram de fazer por mim, em um momento crucial de minha infância, enquanto - como de costume - estavam entregues aos prazeres mundanos.

Não. Eu não dissertarei sobre os erros cometidos por minha mãe. Pobre mãe.

Não. Eu não condenarei meu pai por seus desvios. Pobre pai.

O que quero expressar é que no dia em que enterrara minha mãe, deixara ali, sob aquela chuva fina que escurecia a terra jogada sobre seu caixão, o peso de minha infância perdida, de minha adolescência não vivida e de minha juventude esquecida.

Restara, tão somente, a lembrança dos momentos de confidências (quando ainda lhe restava um pouco de lucidez), onde ela, em um corpo amputado, sofrido, envelhecido e corroído pela doença que, aos poucos, a matava de dentro para fora, dissera-me baixinho que preferiria a morte a dar tanto trabalho aos que dela cuidavam.

Restara a lembrança de - à mesa de um almoço bizarro onde sua rival compartilhara de nossa comida alegremente - ter segurado em suas mãos pequeninas e sussurrado em seus ouvidos: "Estou aqui. Sou contra tudo isso."

Restara a lembrança de seu sorriso quando chegava à sua casa sem que ela o esperasse.

Restara a lembrança de sua inconveniente doçura de querer que eu comesse de tudo a qualquer momento em que lá estivesse...e de seus xingamentos por eu não aceitar nada.

Restara a lembrança de ouví-la - com muita dificuldade - já cercada por aparelhos no CTI do hospital onde desencarnara, pronunciar, logo após um beijo na testa: "Durma com Deus."

Enquanto a terra úmida caía sobre seu caixão, olhara para o homem que - mesmo sem querer - acabara com sua vida, e vira um ser destruído pelo remorso, pela culpa, pela dor de tê-la magoado tanto em vida, sem necessidade. Pobre pai!

Ela partira, deixando-o embriagado, entorpecido, perdido naquela casa onde semearam apenas rancor, amargura, ódio.  Deixara-o a vagar como um espectro, a cambalear sem rumo, sem sentido...a chorar pelos cantos da mesma casa onde tantas e tantas vezes a humilhara, sem necessidade.

Um vulto a se agarrar à sua cadeira de rodas que - por muitas vezes - perseguira-me a fim de levar-me à porta, tão somente para dizer-me: "Vá com Deus...e tranque as portas quando chegar a casa!"

No dia em que enterrara minha mãe, percebera que ainda que ela não tivesse sido a mãe de meus sonhos, sentirei sua falta para sempre.

É estranhamente engraçado o fato de não conseguir regressar àquela casa sem derramar lágrimas. Sem vê-la, sentadinha na beirada da mesa de jantar, pedindo para que eu ficasse ao seu lado por mais algum tempo. E eu...eu não ficava.  Não suportava aquele lugar.

Hoje choro ao lembrar do quanto eu poderia  ter feito e não o fizera.

Sua presença ainda é forte demais naquele lugar. Talvez, por isso, meu pai - pobre pai - esteja chegando ao fim de seus dias...

Mãe! Antes de sua partida pudera - ainda que entredentes - dizer o que ora repito, livre das mágoas de outrora: "Te amo."

Cure-se. Trabalhe. Faça o bem. Evolua e, quando estiver pronta...
Olhe por nós.


30/11/2013 - 19h04m

http://youtu.be/YLsadvftBk4