"Entre dois Mundos"

"Entre dois Mundos"

sábado, 27 de julho de 2013

O Último Banho - Adeus, Mandy.

Durante o caminho, pensara nas gargalhadas que ela provocara em mim, na noite anterior, ao telefone, quando mencionara o banho que nela daria: "Ai meo deos!". Soara como um dialeto alemão em slowmotion. Rira tanto ao som daquela voz quase inaudível, para, logo em seguida, chorar por aquela que tanto sofrera durante toda sua vida.

Nunca a vira sorrir sem que o "redimido" - ex-tirano - o permitisse.

Chegara à sua casa e a vira entre edredons. Aproximara-me e sentira - com um misto de asco e compaixão - seu odor. O odor daqueles que já não pertencem a este mundo, tampouco àquele.

Olhara aquela mulher - antes altiva, quase soberba, entre as cobertas, pequenina como um pássaro que quebrara suas asas ao tentar voar alto demais.

Dissera-lhe:

"Cheguei, mãe! Vamos ao banho?". Aguardando o famoso "ai meo deos" que tanto fizera-me rir.

Cuidara de suas feridas antes do banho, pedindo a Deus para que minhas intuições estivessem certas e a fenda em sua testa estivesse curada.  Como em um milagre, vira seu ferimento fechado, apesar de ainda de cuidados necessitar.

Nenhuma reclamação fora ouvida. Somente o silêncio dos que aprenderam com a vida, ainda que no final da mesma.

Após o banho, a tremer como um cachorrinho após o seu primeiro contato com a água, deixara-se conduzir por minhas mãos.  

Limpa, cheirosa e feliz por eu estar ao seu lado, sentira, ainda, o frio daquele dia.  Deitada, dissera-me, em seu dialeto germânico, que o frio estaria a congelar seu corpo.

Seguindo um impulso de amor e piedade, deitara metade de meu corpo sobre o dela, chegando a ouvir seu coração batendo, teimando em não parar.

Ouvira na sala uma música que contara a história triste de Van Gogh. História de melancolia, insanidade, incompreensão e morte.

Não pudera conter minhas lágrimas ao olhar para aquele rostinho magro, com um dos olhos roxo pela queda, provocada por sua insanidade temporária.

Ouvira suas palavras - agora firmes e conscientes - de força para que eu continuasse a crer em Deus. Pedira-me paciência, pois tudo mudaria para melhor.

Gargalhamos juntas - pela primeira vez em muito tempo - quando dissera-lhe que meu filho, após a minha morte, teria uma certa quantia a receber.  Ela, sem entender exatamente o que eu estaria dizendo - perguntara-me "O Matheus fica com este dinheiro e você, fica com o quê?"

"Fico morta, mãe."
 (...)

Sua gargalhada gostosa fora notada por mim com tanta felicidade que por um momento - um breve momento -  pudera me esquecer do mar de angústias que tenho atravessado.

"Mãe, a senhora acha que já está partindo?". Perguntara-lhe a fim de saber se estaria preparada para a passagem.

"Ih! Que nada! Só vou depois dos 80 anos!"

"Mãe, a senhora já está com 84 anos."

(...)

Gargalhadas compartilhadas somente entre nós duas...

Fora embora somente depois de beliscar a comida que ela pusera em meu prato, com suas mãos trêmulas e lentas, pois dissera que só comeria se eu a acompanhasse.

"Lila, você não sente fome?"
"Mãe, eu não sinto mais nada."

Nossos olhares cruzaram-se mais uma vez e fora repreendida por ela. 

Por ela que, apesar de tudo, encontrara forças para levantar-se de sua cama, sentar-se à mesa e comer, ainda que com extrema dificuldade.

"Lila, tem gente que encontra a felicidade aos 50 anos"
"Poxa, mãe! Ainda terei de ralar por mais 6 anos!?"
(...)



Despedira-me ao som de sua gargalhada.  Aquela mulher que tanto sofrera ainda possuía forças e motivos para gargalhar...

Tal qual uma vela ao sabor do vento, ela - minha mãe - oscila entre a lucidez e a insanidade.  Entre   a vergonha e o esquecimento. Entre a vida e a morte.

Nunca mais me esquecerei de sua gargalhada, dificultada por sua posição incômoda deitada naquela cama onde permanece por muito tempo, esquecendo-se da vida aqui na Terra. Conectada ao passado doloroso e ao futuro desconhecido.

Lembro-me ainda da música triste que ouvira enquanto estava deitada sobre seu corpinho de pássaro com asas quebradas...

http://youtu.be/P6B0pELZj1E

Minha mãe, em momentos de confusão mental, clama por seu filho desaparecido. Julgá-lo? Não poderia fazê-lo. Apenas lamento por um ser humano que não é capaz de perdoar o passado e vive em um inferno interior...




00:22 - 28/07/2013

Vincent - Starry Starry Night - Don McLean (traduzido para o português).

terça-feira, 2 de julho de 2013

A Queda do Tirano

Fora duro para "o pequeno soldado" assistir à queda do Tirano.  Fora duro para os dois últimos "soldados" que resistiram à batalha de quase meio século, encarar aquele ser egoísta, frio e calculista.

Mais de 40 anos expostos naquela távola onde reuníram-se todos: "soldados", "aquela que nunca fora amada" e o "Tirano".

Gritos, injúrias, ofensas, confissões grotescas foram despejadas sobre o local onde - outrora - a família que jamais conhecera a felicidade, alimentava-se.

Houve lágrimas abundantes. Lágrimas que jorraram dos olhos estupefactos do "Tirano" e desesperançosos dos "soldados" que viam - pela primeira vez - a verdadeira e cruel face do verdugo sem escrúpulos que assumira, sorrindo, ser um traidor, um desleal, um oportunista.

Seu grande ato final fora abandonar "aquela que nunca fora amada" (e sempre traída) para chafurdar-se nos braços enlameados da amante que em breve terá um fim mais trágico do que o dele.  A amante - que também não é amada - padece de uma doença cruel, degenerativa, sem cura.  Provavelmente, será abandonada pelo "Tirano" antes de esquecer-se de si mesma.

"Aquela que nunca fora amada", largada pelo homem de sua vida, não derramara uma só lágrima. Diante do" pequeno soldado" que possuía o estranho dom de enxergar "além da linha vermelha", "aquela que nunca fora amada" agigantara-se em seu trono com rodas de aço.

Renascera das cinzas tal qual a Fênix, a fim de brilhar como jamais o fizera nesta vida.

O que era sombra, tornara-se Luz. Luz Intensa!  Seu coração - antes negro como o piche - possuía, agora, o tom rosáceo da pele de um bebê.

Como uma alma pudera ter-se transformado, transmutado tão intensamente, em tão pouco tempo, no exílio onde estivera!?

Durante o período em que vivera entre Dois Mundos foram-lhe retirados o ódio, a mágoa,o rancor.

Mais parecia uma Rainha digna das Terras Médias! Sentada à mesa, não julgara, não apontara defeitos, não se queixara, não erguera sua voz que mantivera-se mansa, quase inaudível.

Lembrara-me uma anciã do clã do Elfos...

Quando em momentos de horror, ao encarar as Trevas que escorriam pela boca do "Tirano" e de seus "comparsas", o "pequeno soldado" buscava alívio no frescor daquela que deixara de ser citada como "aquela que nunca fora amada" para, dali por diante, ser reconhecida em toda a aldeia, condecorada "pelos que lá habitam",  como "A Dama de Luz".

Em seus olhos plácidos leem-se - agora -  o perdão. A paz tão desejada...tão esperada.

Seus olhos - agora - fitam o "tirano" caído como quem fita um doente que necessita de um forte remédio para a cura de uma doença que ainda levará anos para ser curada.

"A Dama de Luz" - agora - demonstra seu amor pelo "pequeno soldado"  como uma criança o faria por sua mãe.

O "pequeno soldado", feliz por vê-la curada espiritualmente, começara, aos 44 anos de existência, a amar aquela senhora franzina, de cabelos alvos e de coração rosado.


O "tirano caído", tenta - agora - retomar o caminho de volta à decência, à honestidade. Caído, tenta - agora - recuperar o amor dos "soldados". Porém, como receber algo que nunca fora doado?

O "pequeno soldado" não deseja voltar a vê-lo. Sua piedade por ele é tão intensa que não suportaria vê-lo na lama a erguer sua mão, em um desespero mudo, pois ainda é orgulhoso por demais.

O "pequeno soldado" chora todas as vezes em que se lembra "daqueles que nunca souberam o que é o amor".


02/07/2013 - 20h17m