Nunca a vira sorrir sem que o "redimido" - ex-tirano - o permitisse.
Chegara à sua casa e a vira entre edredons. Aproximara-me e sentira - com um misto de asco e compaixão - seu odor. O odor daqueles que já não pertencem a este mundo, tampouco àquele.
Olhara aquela mulher - antes altiva, quase soberba, entre as cobertas, pequenina como um pássaro que quebrara suas asas ao tentar voar alto demais.
Dissera-lhe:
"Cheguei, mãe! Vamos ao banho?". Aguardando o famoso "ai meo deos" que tanto fizera-me rir.
Cuidara de suas feridas antes do banho, pedindo a Deus para que minhas intuições estivessem certas e a fenda em sua testa estivesse curada. Como em um milagre, vira seu ferimento fechado, apesar de ainda de cuidados necessitar.
Nenhuma reclamação fora ouvida. Somente o silêncio dos que aprenderam com a vida, ainda que no final da mesma.
Após o banho, a tremer como um cachorrinho após o seu primeiro contato com a água, deixara-se conduzir por minhas mãos.
Limpa, cheirosa e feliz por eu estar ao seu lado, sentira, ainda, o frio daquele dia. Deitada, dissera-me, em seu dialeto germânico, que o frio estaria a congelar seu corpo.
Seguindo um impulso de amor e piedade, deitara metade de meu corpo sobre o dela, chegando a ouvir seu coração batendo, teimando em não parar.
Ouvira na sala uma música que contara a história triste de Van Gogh. História de melancolia, insanidade, incompreensão e morte.
Não pudera conter minhas lágrimas ao olhar para aquele rostinho magro, com um dos olhos roxo pela queda, provocada por sua insanidade temporária.
Ouvira suas palavras - agora firmes e conscientes - de força para que eu continuasse a crer em Deus. Pedira-me paciência, pois tudo mudaria para melhor.
Gargalhamos juntas - pela primeira vez em muito tempo - quando dissera-lhe que meu filho, após a minha morte, teria uma certa quantia a receber. Ela, sem entender exatamente o que eu estaria dizendo - perguntara-me "O Matheus fica com este dinheiro e você, fica com o quê?"
"Fico morta, mãe."
(...)
Sua gargalhada gostosa fora notada por mim com tanta felicidade que por um momento - um breve momento - pudera me esquecer do mar de angústias que tenho atravessado.
"Mãe, a senhora acha que já está partindo?". Perguntara-lhe a fim de saber se estaria preparada para a passagem.
"Ih! Que nada! Só vou depois dos 80 anos!"
"Mãe, a senhora já está com 84 anos."
(...)
Gargalhadas compartilhadas somente entre nós duas...
Fora embora somente depois de beliscar a comida que ela pusera em meu prato, com suas mãos trêmulas e lentas, pois dissera que só comeria se eu a acompanhasse.
"Lila, você não sente fome?"
"Mãe, eu não sinto mais nada."
Nossos olhares cruzaram-se mais uma vez e fora repreendida por ela.
Por ela que, apesar de tudo, encontrara forças para levantar-se de sua cama, sentar-se à mesa e comer, ainda que com extrema dificuldade.
"Lila, tem gente que encontra a felicidade aos 50 anos"
"Poxa, mãe! Ainda terei de ralar por mais 6 anos!?"
(...)
Despedira-me ao som de sua gargalhada. Aquela mulher que tanto sofrera ainda possuía forças e motivos para gargalhar...
Tal qual uma vela ao sabor do vento, ela - minha mãe - oscila entre a lucidez e a insanidade. Entre a vergonha e o esquecimento. Entre a vida e a morte.
Nunca mais me esquecerei de sua gargalhada, dificultada por sua posição incômoda deitada naquela cama onde permanece por muito tempo, esquecendo-se da vida aqui na Terra. Conectada ao passado doloroso e ao futuro desconhecido.
Lembro-me ainda da música triste que ouvira enquanto estava deitada sobre seu corpinho de pássaro com asas quebradas...
http://youtu.be/P6B0pELZj1E
Minha mãe, em momentos de confusão mental, clama por seu filho desaparecido. Julgá-lo? Não poderia fazê-lo. Apenas lamento por um ser humano que não é capaz de perdoar o passado e vive em um inferno interior...
00:22 - 28/07/2013
Minha amiga... Que história forte você tem...
ResponderExcluirFiquei emocionado apenas lendo o seu relato...
Agora vou te admirar mais pela força que você tem...
Fico feliz que mesmo no fim você demonstrou o Amor para sua mãe...
Parabéns!!!
Amigo...
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